A falta de cultura societária no Brasil

Na última semana, iniciei a releitura do livro Estruturação Jurídica de Empresas do professor Gladston Mamede. Este artigo é fruto de algumas reflexões a partir da leitura dos capítulos iniciais.

No Brasil, a falta de cultura societária tem sido um dos principais fatores de instabilidade, que atinge das pequenas a grandes empresas. Muitas sociedades empresariais nascem da empolgação de uma boa ideia ou da confiança entre amigos e familiares, mas sem qualquer planejamento jurídico sólido. A crença de que “depois se resolve” ou que “está tudo bem enquanto todos se dão bem” acaba gerando um cenário caótico quando as primeiras divergências aparecem. Sem um alicerce jurídico bem construído, os problemas são apenas uma questão de tempo.

Por outro lado, a extrema praticidade de “modelos prontos” não reflete a viva relação que se espera da dinâmica entre sócios.

O resultado dessa negligência pode ser observado diariamente: conflitos entre sócios, empresas paralisadas por disputas internas, descontrole financeiro e, em muitos casos, dissoluções traumáticas. O mais preocupante é que muitas dessas situações poderiam ter sido evitadas com um planejamento jurídico adequado desde o início.

A Ilusão dos modelos prontos, a formalidade engessada e o risco do amadorismo

Com o avanço da internet, tornou-se comum encontrar modelos padronizados de contratos sociais, acordos de sócios e outros documentos essenciais para a estruturação de uma empresa. Muitos empreendedores, na tentativa de economizar tempo e dinheiro, optam por adotar esses modelos prontos sem qualquer adaptação à realidade do seu negócio. O problema é que tais documentos são genéricos, não levam em conta as particularidades da empresa e tampouco contemplam cenários de crise ou crescimento.

Modelos prontos podem ser úteis como referência inicial para entender a estrutura básica de um contrato social ou de um acordo de sócios, mas jamais devem ser utilizados como solução definitiva para a formalização de uma sociedade. Eles servem apenas como um ponto de partida, ajudando o redator a visualizar quais cláusulas precisam ser abordadas, mas não contemplam as especificidades do negócio, as particularidades dos sócios e os riscos jurídicos envolvidos. Um modelo genérico pode até dar uma falsa sensação de segurança no início, mas, quando a empresa cresce e surgem desafios reais, suas limitações ficam evidentes, deixando brechas que podem comprometer a estabilidade e até a continuidade do negócio.

Uma sociedade empresarial construída a partir de um “modelo de internet” ignora aspectos societários fundamentais, como a definição clara de papéis e poderes, critérios para a tomada de decisões, regras de sucessão, mecanismos de saída de sócios e formas de resolução de conflitos. O que pode parecer um contrato “completo” muitas vezes não passa de um documento raso, sem dispositivos jurídicos sólidos para proteger o patrimônio da empresa e garantir sua continuidade.

O erro mais grave é a falsa sensação de segurança. O empresário que acredita ter resolvido a parte societária com um documento padrão descobre, tarde demais, que sua estrutura não está preparada para desafios reais. Quando surge uma disputa entre sócios, um impasse na administração ou uma oportunidade de investimento, o que deveria ser um suporte jurídico confiável se revela uma armadilha.

O preço da negligência: conflitos, perdas e paralisação do negócio

Uma sociedade sem planejamento estruturado é um campo minado. No início, enquanto todos compartilham o mesmo entusiasmo pelo crescimento da empresa, as decisões são tomadas de forma intuitiva. Mas, à medida que o negócio cresce, o dinheiro começa a circular e novas oportunidades e desafios surgem, as divergências aparecem.

Quem tem mais poder de decisão? Como será feita a distribuição de lucros? Um sócio pode se retirar da empresa a qualquer momento? E se ele decidir vender sua participação para um concorrente? O que acontece se um dos sócios falecer ou se tornar incapaz? Como lidar com um sócio que já não contribui, mas continua tendo direitos sobre a empresa?

Sem um acordo de sócios bem elaborado e um contrato social robusto, essas questões tornam-se bombas-relógio. Conflitos internos se tornam inevitáveis e, muitas vezes, impossíveis de solucionar sem uma disputa judicial. O desgaste emocional, os custos processuais e a incerteza jurídica acabam prejudicando não apenas os sócios, mas também os clientes, fornecedores e funcionários da empresa.

Outro impacto grave da falta de estrutura societária é a dificuldade de crescimento. Empresas que não possuem uma governança bem definida enfrentam resistência para atrair investidores e fechar parcerias estratégicas. Investidores sérios não colocam dinheiro em negócios que não oferecem segurança jurídica. Isso significa que uma empresa sem uma base societária estruturada pode perder oportunidades de expansão e ver concorrentes mais organizados tomarem a frente no mercado.

O advogado como arquitetura jurídica da empresa

Muitos empresários ainda enxergam o advogado apenas como alguém que resolve problemas quando eles surgem, em vez de um profissional essencial para evitar que esses problemas aconteçam. O advogado empresarial não deveria ser chamado apenas quando um conflito já está instalado, mas sim no momento da construção da sociedade, para garantir que a empresa tenha um alicerce jurídico sólido desde o início.

A atuação de um advogado especializado não se limita a redigir documentos. Ele ajuda a estruturar a governança da empresa, definir critérios claros de gestão, proteger o patrimônio dos sócios e criar mecanismos para evitar litígios futuros. Além disso, acompanha o crescimento da empresa, ajustando os documentos jurídicos conforme novas necessidades surgem.

A estruturação societária deve ser tratada como um investimento estratégico, assim como o empresário investe em tecnologia, marketing e equipe. Uma empresa bem planejada juridicamente é mais segura, previsível e preparada para enfrentar desafios.

Mudança de mentalidade: do improviso à estratégia

A principal barreira para a consolidação de uma cultura societária forte no Brasil não está na complexidade jurídica, mas na mentalidade dos empresários. Muitos ainda veem o planejamento jurídico como uma formalidade, algo secundário, que pode ser resolvido com um modelo pronto ou quando surgir um problema. Esse pensamento precisa ser superado.

A cultura societária deve ser vista como um pilar essencial da empresa. Definir regras claras desde o início não é apenas uma questão burocrática, mas uma estratégia para garantir estabilidade, evitar desgastes e criar um ambiente propício ao crescimento sustentável.

Uma sociedade bem estruturada não nasce do improviso. Ela exige planejamento, personalização e visão de longo prazo. Empresários que negligenciam esse aspecto essencial do negócio estão apenas adiando problemas que, mais cedo ou mais tarde, irão surgir – e, quando surgirem, o custo para resolvê-los será muito maior.

Construir uma empresa sólida significa enxergar além do curto prazo. Quem entende isso se diferencia no mercado, evita riscos desnecessários e cria um caminho seguro para prosperar. O Direito não é um obstáculo, mas um aliado fundamental para transformar uma boa ideia em um negócio de sucesso.

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