magine a seguinte cena: uma empresa é condenada em uma ação de consumo e, no momento da execução, o juiz determina, sem maiores justificativas, a inclusão de todos os sócios no processo. Entre eles, está um sócio minoritário que nunca exerceu função de gestão, não assinou contratos, não participou da rotina administrativa e já estava afastado da sociedade há anos.
Ainda assim, teve bens bloqueados, seu CPF negativado, e precisou iniciar uma batalha jurídica para provar algo que deveria ser elementar: que ele não poderia ser responsabilizado por obrigações que jamais ajudou a contrair.
Esse tipo de situação revela uma distorção grave: o uso da desconsideração da personalidade jurídica como instrumento automático de responsabilização, mesmo diante da ausência de indícios mínimos de abuso ou má-fé por parte do sócio atingido.
Mas afinal, qual é o verdadeiro alcance da desconsideração da personalidade jurídica? E até onde ela pode ser combatida?
O conceito: exceção que exige critério
A personalidade jurídica é uma ficção legal que permite a uma empresa existir como um ente distinto de seus sócios. Ela pode contrair obrigações, adquirir bens, ser demandada judicialmente e responder com seu próprio patrimônio.
A desconsideração da personalidade jurídica rompe, em situações específicas, essa separação. Trata-se de uma técnica de superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, que permite atingir os bens de sócios ou administradores quando esta autonomia é usada de forma abusiva ou fraudulenta.
Porém, como bem destaca a doutrina e a jurisprudência mais moderna, a desconsideração não é sanção automática por inadimplemento — tampouco pode ser aplicada com base apenas na insuficiência patrimonial da empresa.
As duas principais teorias no Brasil: maior x menor
A aplicação da desconsideração no Brasil varia conforme o regime jurídico aplicável. São duas as vertentes principais:
1. Teoria maior – Art. 50 do Código Civil
Adota-se aqui uma lógica mais restritiva e garantista. Para que se desconsidere a personalidade jurídica, é necessário demonstrar a ocorrência de:
- Desvio de finalidade (uso da empresa para fins alheios ao seu objeto ou para fraudar terceiros); ou
- Confusão patrimonial (mistura indiscriminada entre o patrimônio da empresa e o pessoal dos sócios).
Além disso, a responsabilização só alcança os envolvidos nos atos abusivos. Ou seja: é necessário nexo causal entre a conduta do sócio e o prejuízo.
2. Teoria menor – Art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, normas ambientais e trabalhistas
Já na teoria menor, não se exige prova de abuso da personalidade jurídica. Basta demonstrar que a separação entre sócio e empresa representa um obstáculo à reparação do dano. Essa teoria é aplicada em três grandes áreas:
Relações de consumo: quando a empresa desaparece, deixa de existir formalmente ou não possui bens suficientes para indenizar o consumidor.
Direito ambiental: em função do princípio da reparação integral e da responsabilidade objetiva dos poluidores.
Relações trabalhistas: aqui, aplica-se o princípio da proteção do hipossuficiente. A responsabilidade patrimonial dos sócios pode ser reconhecida sempre que a pessoa jurídica for considerada insuficiente para satisfazer a condenação.
Contudo, mesmo diante da teoria menor, a responsabilização de sócios sem qualquer vínculo com a conduta lesiva ou sem participação na administração da empresa é incompatível com os princípios da pessoalidade da responsabilidade civil e da legalidade processual.
Não se trata de negar o direito à reparação — mas de lembrar que o processo deve identificar com clareza quem de fato praticou o ato ilícito
A desconsideração inversa: quando o alvo é a empresa
Além da modalidade tradicional, há ainda a desconsideração inversa da personalidade jurídica, prevista no art. 133, §2º, do Código de Processo Civil. Trata-se do movimento oposto ao habitual: o patrimônio da empresa é atingido para satisfazer dívidas pessoais do sócio.
Esse instituto é aplicado quando o devedor — pessoa física — utiliza a empresa como escudo para ocultar bens, dificultar a execução ou simular insolvência. É uma forma de combate à fraude patrimonial por trás da fachada empresarial.
Um cenário cada vez mais comum, especialmente em execuções trabalhistas e empresariais, é o seguinte:
O sócio abandona formalmente a sociedade, mantém a empresa inativa ou sem atividade operacional real, e abre, em nome próprio ou de terceiros (como cônjuges, parentes ou “laranjas”), uma nova empresa que passa a exercer exatamente as mesmas atividades, com os mesmos clientes, estrutura física, funcionários e dinâmica operacional da anterior.
Ainda que não haja vínculo societário formal, a fraude se revela pelo conteúdo da operação. Nesse tipo de situação, é comum que a nova empresa seja usada para dar continuidade à atividade empresarial anterior, mas sob novo CNPJ — com o objetivo evidente de se esquivar das obrigações deixadas para trás.
Quando isso acontece, a jurisprudência tem reconhecido a existência de grupo econômico de fato, ou mesmo sucessão empresarial dissimulada, permitindo:
- A desconsideração inversa para atingir o patrimônio da nova empresa; ou
- A responsabilização solidária com base na caracterização de grupo econômico oculto ou informal.
Esses casos exigem análise probatória detalhada — como semelhança entre os quadros funcionais, identidade de endereço, clientes comuns, continuidade de faturamento, uso compartilhado de recursos ou vínculos familiares/societários entre as empresas envolvidas.
A doutrina e a jurisprudência mais atentas consideram que, embora cada pessoa jurídica deva ser tratada como ente autônomo, essa autonomia não pode ser usada de forma simulada para fraudar credores ou burlar a execução de obrigações legítimas.
Por isso, a desconsideração inversa — quando bem fundamentada e lastreada em provas — é medida legítima para impedir a perpetuação de condutas abusivas travestidas de formalidade societária.
O sócio minoritário na linha de tiro
Entre os erros mais comuns na aplicação da desconsideração está a inclusão automática de sócios minoritários, apenas pelo fato de figurarem no contrato social.
O sócio minoritário:
- Não detém poderes de mando;
- Não responde pela condução das operações;
- Muitas vezes, sequer participa de assembleias ou atos deliberativos;
- E não usufrui do controle ou da administração da empresa.
Responsabilizá-lo sem qualquer demonstração de culpa, dolo, benefício ou participação nos atos ilícitos é afrontar os princípios da segurança jurídica, da responsabilidade pessoal e da proporcionalidade.
O Judiciário não pode, sob pretexto de “garantir o cumprimento da sentença”, abrir mão dos requisitos mínimos para imputar responsabilidade a alguém. A execução não pode se sobrepor à legalidade.
O precedente que reforça esse entendimento
Em um caso recente analisado pelo STJ (Recurso Especial nº 2175911 – SP), discutia-se justamente a inclusão de um sócio minoritário e sem qualquer função de gestão no polo passivo de uma execução baseada em sentença proferida em uma ação de consumo.
A corte superior confirmou que, mesmo em relações de consumo — em que se admite a teoria menor da desconsideração — não se pode responsabilizar quem não teve qualquer envolvimento com o ato que originou o prejuízo.
O acórdão deixou claro que a mera participação societária, sem poderes de administração e sem envolvimento direto com os atos lesivos, não é suficiente para justificar a medida. E, por estar de acordo com jurisprudência pacificada da própria Corte, o recurso foi indeferido com base na Súmula 568/STJ.
A decisão fortalece uma importante linha de contenção contra o uso indiscriminado do incidente, protegendo sócios passivos de injustiças processuais.
Por que essa reflexão é importante?
A desconsideração da personalidade jurídica é um instrumento poderoso. Justamente por isso, deve ser usado com parcimônia, fundamento e responsabilidade.
O risco de sua banalização é claro:
- Empresários bem-intencionados passam a temer se associar a negócios legítimos.
- Investidores evitam ingressar em empresas onde possam ser cobrados por condutas alheias.
- A segurança jurídica cede lugar à insegurança institucional.
Garantir que só respondam aqueles que realmente abusaram da estrutura societária não é proteger o “forte” contra o “fraco” — é proteger o sistema jurídico contra o descontrole.
A lógica da desconsideração não pode ser a da vingança patrimonial. Ela existe para coibir fraude, não para punir o insucesso empresarial ou a dificuldade de execução.
Conclusão
Ao colocar um freio no uso automático da desconsideração — principalmente contra sócios sem envolvimento direto nos atos da empresa — o STJ reafirma o que deveria ser princípio básico: a responsabilidade é pessoal, e a personalidade jurídica só pode ser superada em casos excepcionais, mediante demonstração concreta de abuso.
Para quem empreende, investe ou assessora empresas, esse entendimento representa uma vitória do equilíbrio e da racionalidade jurídica. E um lembrete de que, mesmo diante de interesses legítimos de reparação, não se pode atropelar garantias fundamentais para alcançar resultados a qualquer custo.
Tem dúvidas sobre esse tema ou sugestões para os próximos artigos? Vamos conversar nos comentários.