Quando um sócio se desliga — por retirada, exclusão ou morte — a disputa raramente começa pelo valor em si; ela nasce da escolha do critério de avaliação. A lei oferece uma moldura, a jurisprudência tem preferências claras, e o contrato pode refinar o desenho. É justamente nessa intersecção que se decide se o processo será previsível e rápido, ou caro e litigioso. O art. 1.031 do Código Civil determina que, resolvida a sociedade em relação a um sócio, o valor de sua quota se apure com base na situação patrimonial da sociedade, “à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado”. O texto não é decorativo: ele elege uma fotografia patrimonial daquele dia e manda levantá-la de forma própria para o evento.
O Código de Processo Civil, no art. 606, fecha o circuito quando o contrato é omisso: o juiz deve adotar o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando como referência a data da resolução e avaliando ativos tangíveis e intangíveis e passivos a preço de saída. Essa diretriz, hoje, funciona como o “padrão-ouro” processual: privilegia o que existe e é mensurável naquele momento, em vez de estimativas de futuro.
A jurisprudência do STJ consolidou essa leitura. No REsp 1.877.331/SP (3ª Turma, 13/4/2021, DJe 14/5/2021), a Corte afirmou que o fluxo de caixa descontado — ferramenta típica para valorar negócios pela riqueza futura — não é adequado na apuração de haveres, que deve seguir o balanço de determinação. O acórdão explicita a contradição: por que obrigar a sociedade a pagar, em curto prazo, com dinheiro de caixa presente, um valor construído sobre lucros que talvez ocorram (e sob riscos que o retirante já não assumirá)?
No REsp 1.904.252/RS (4ª Turma, DJe 1/9/2023), o STJ reforçou o primado do critério contratual — quando houver — e, na omissão, do balanço de determinação, afastando de novo a projeção de lucros futuros. O acórdão ainda enfrentou tema sensível nos litígios: a pretensão de lucros não distribuídos ao retirante segue a regra trienal do art. 206, § 3º, VI, do CC. Esses parâmetros vêm sendo invocados país afora como bússola para perícias e sentenças.
Existe outro equívoco comum no dia a dia: exigir da Junta Comercial qualquer ingerência na apuração e no pagamento dos haveres. Não é o papel dela. A própria regulamentação do DREI esclarece que não compete à Junta verificar lançamentos, arbitrar critérios de avaliação ou condicionar arquivamentos à quitação de haveres; sua função é registral. Esse detalhe, embora administrativo, costuma destravar negociações e evita condicionantes indevidas em alterações contratuais.
A lei e o STJ definem o mínimo — “fotografia patrimonial” na data de resolução, avaliada por balanço de determinação. Mas o melhor critério dependerá do tipo de sociedade, do ciclo de negócios e da própria razão de retirada.
Em operações estáveis, com contabilidade confiável, o balanço de determinação tende a produzir resultado técnico e defensável. Em negócios intensivos em intangíveis, a qualidade do dossiê para mensurar marca, carteira, software e relações contratuais define a robustez do número.
Em cenários de conflito grave, convém que o acordo societário já traga válvulas de ajuste, como abatimentos por contingências ou políticas claras para contas a receber de difícil realização, desde que não afrontem a moldura legal e a orientação do STJ sobre o banimento de projeções de lucros.
O ponto nevrálgico é a data de corte. Ela não apenas delimita o que entra e o que fica de fora; ela também redefine a natureza de muitos fatos contábeis. Estoques precisam ser recontados e precificados pelo que efetivamente seriam realizáveis em mercado; contratos de longo prazo exigem verificação de obrigações de desempenho remanescentes; intangíveis só entram quando mensuráveis por evidências objetivas de saída — cessões comparáveis, transações arm’s length, laudos técnicos com base em múltiplos observáveis. Quando a discussão aparece tardiamente, eventos subsequentes confundem a análise: ganhos e perdas que nascem depois da data de corte não pertencem ao montante do retirante, ainda que, do ponto de vista econômico, pareçam “relacionados”.
Para que contabilidade e jurídico falem a mesma língua, pense no “preço de saída” de forma prática: se você precisasse vender hoje um ativo, por quanto ele sairia? Se tivesse de quitar hoje uma dívida, quanto pagaria? Não é o que custou no passado nem o que você imagina ganhar no futuro. Em intangíveis — como marca, carteira de clientes ou software — só faz sentido considerar valores com prova de mercado: transações comparáveis, bases confiáveis e laudos independentes. Do lado dos passivos, a solidez vem de políticas de provisão claras, contingências mapeadas e premissas registradas — tudo documentado e auditável. Quando esse alinhamento acontece antes do conflito, a perícia tem menos espaço para contestar método e premissas, e a apuração se torna mais previsível para todos.
O contrato social e o acordo de sócios são a sua melhor apólice. Eles podem: fixar previamente a data de corte típica de cada evento (retirada, morte, exclusão); detalhar como intangíveis serão mensurados e por quem; disciplinar o tratamento de passivos contingentes e operações entre partes relacionadas; organizar a forma e o prazo de pagamento, com indexador e início dos juros; e prever perícia especializada com mecanismo de desempate técnico (inclusive arbitragem). Tudo isso precisa respeitar o núcleo normativo — CC 1.031 e CPC 606 — e o entendimento do STJ sobre a vedação a projeções. A vantagem é dupla: previsibilidade para os sócios e menor assimetria para o perito que executará o trabalho.
Quando há consenso, a apuração extrajudicial é plenamente viável. O balanço de determinação sai do papel como instrumento técnico de partilha, as partes negociam ajustes e o pagamento é estruturado conforme o fôlego do caixa.
Quando há dissenso, o caminho judicial previsto no CPC impõe um rito: o juiz fixa a data-base, define o critério (observando o contrato) e nomeia perito com experiência em avaliação de sociedades. A perícia recebe quesitos, produz laudo e abre-se espaço para manifestações técnicas. A grande virada, aqui, é manter a discussão no terreno patrimonial, sem deslizar para projeções.
No contencioso, a prova conta mais do que adjetivos. A narrativa deve amarrar a data de corte a fatos verificáveis; os quesitos periciais precisam pedir memória de cálculo granular, fontes de mercado e justificativas explícitas para cada ajuste; a documentação contábil tem que vir completa e coerente — balancetes, razão, contratos-chave, laudos de marca/tecnologia, política de provisões. Se a parte contrária insistir em fluxo de caixa descontado, a resposta técnica é simples: a lei e o STJ não o admitem para apurar haveres, e a razão econômica também não — o retirante não pode capturar riqueza ainda não gerada pelos que permanecerão.
A governança, por sua vez, começa antes da crise. Revisar periodicamente o acordo de sócios à luz de mudanças no negócio; padronizar um dossiê de apuração com listas de documentos e procedimentos; treinar o financeiro no conceito de preço de saída; registrar com rigor transações entre sócios e sociedade; e dar tratamento regular aos lucros não distribuídos — inclusive considerando o marco prescricional trienal apontado pelo STJ para pretensões correlatas — são rotinas que transformam uma eventual saída societária em evento administrável, e não em trauma.
Em síntese, a escolha do critério não é neutra: ela protege a continuidade da empresa, confere justiça ao desligado e organiza o trabalho técnico do perito. A lei e o STJ já fizeram as principais escolhas — balanço de determinação, data de corte, preço de saída, rejeição a lucros futuros —; cabe aos sócios completar o serviço no contrato e aos profissionais de contabilidade dar forma mensurável a esse desenho.
Quando jurídico e contabilidade falam a mesma língua desde o início, a apuração de haveres deixa de ser um campo de batalha e volta a ser o que sempre deveria ter sido: um procedimento técnico, previsível e leal com todos os envolvidos.