É curioso — e, de certo modo, inquietante — perceber que, mesmo diante de um ambiente normativo em constante mutação, muitos empresários ainda reagem às alterações legislativas com surpresa, como se determinadas mudanças tivessem simplesmente surgido do nada, como se não tivessem sido longamente anunciadas, discutidas, redigidas, votadas, aprovadas e publicadas.
Essa reação nem sempre é falta de informação. Ela expõe um traço comum no comportamento empresarial brasileiro: a expectativa de permanência em um cenário estruturalmente instável. Espera-se estabilidade em um país onde a instabilidade normativa é a regra, e não a exceção. E, quando essa instabilidade se manifesta — como sempre se manifesta —, a surpresa se converte em atraso, o atraso em erro, e o erro em custo.
Estamos assistindo a um dos maiores processos de reestruturação do sistema tributário nacional, cujos efeitos não se restringem ao planejamento contábil ou à organização fiscal da empresa. A reforma tributária que começa a ser implementada modifica profundamente a lógica de precificação, a relação contratual com fornecedores e prestadores, a forma de repasse de tributos ao consumidor final e, sobretudo, os critérios que definem a eficiência operacional do negócio.
Além disso, ela alcança diretamente o empresário enquanto pessoa física: reorganizações patrimoniais, estruturas de holdings familiares, investimentos financeiros e previdência privada precisarão ser revistos à luz das novas sistemáticas de tributação, sob pena de tornarem-se, de uma hora para outra, insustentáveis ou juridicamente vulneráveis.
Não se trata de especulação. As mudanças estão em andamento. E o tempo para se preparar não é quando a mudança já entrou em vigor — é antes.
O mesmo raciocínio vale para as alterações nas normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho. A nova NR1, por exemplo, não apenas reformula as exigências em termos de gestão de riscos, como também reposiciona a responsabilidade empresarial sobre acidentes e doenças ocupacionais. Não se trata mais de seguir uma cartilha burocrática. O Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR), hoje obrigatório, exige mapeamento, análise, prevenção ativa e evidência documental contínua. Ignorar isso é criar, por omissão, um passivo trabalhista e previdenciário que não se manifesta de imediato, mas que, quando o faz, cobra com juros a negligência da estrutura.
A mesma negligência — muitas vezes involuntária, mas nem por isso menos custosa — é visível no tratamento dado à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Desde sua entrada em vigor, o discurso recorrente nas pequenas e médias empresas é de que “isso é coisa para multinacional”. Como se dados pessoais de clientes, fornecedores, parceiros ou colaboradores não circulassem dentro de empresas de menor porte. Como se a responsabilidade fosse proporcional ao faturamento, e não à conduta.
A LGPD não exige sofisticação tecnológica extrema; exige, antes, um mínimo de consciência organizacional, de compromisso com a transparência, de estrutura procedimental. A ausência disso, somada à existência de decisões judiciais e administrativas que já responsabilizaram empresas de todos os tamanhos, revela que o risco jurídico está mais presente do que muitos gestores gostariam de admitir.
E há ainda o discurso, cada vez mais presente — mas ainda pouco compreendido — do ESG. Em muitos ambientes empresariais, ESG virou sinônimo de marketing institucional ou de iniciativa cosmética. Mas, quando olhado com honestidade e profundidade, o ESG nada mais é do que um espelho interno: ambiental, social e governança são apenas categorias pelas quais se olha para dentro da empresa, se mede o impacto de sua atuação e se decide o que será corrigido, aprimorado ou mantido.
A governança, em especial, deveria estar no centro das preocupações de quem pretende perpetuar um negócio, evitar litígios societários, mitigar riscos de responsabilização e manter a coerência entre o discurso público da empresa e sua prática interna.
Se essas mudanças já seriam suficientes para exigir uma postura jurídica ativa por parte da empresa, ainda há um fator a mais: as decisões judiciais. Em um país como o Brasil, onde a jurisprudência tem um peso normativo concreto, atualizações oriundas dos tribunais superiores podem, em questão de semanas, mudar completamente a forma como uma operação é tributada, a validade de uma cláusula contratual, a extensão da responsabilidade de sócios e administradores, ou até mesmo o enquadramento de determinada atividade empresarial em normas regulatórias específicas. E tudo isso acontece à margem da lei escrita — mas não à margem do Direito. O empresário que ignora a força da jurisprudência age no escuro, guiado por um manual que já não descreve o caminho.
O mais preocupante, porém, é que todas essas transformações — reforma tributária, atualizações regulatórias, LGPD, ESG, jurisprudência — não surgiram de surpresa. Elas foram anunciadas, debatidas, noticiadas. Estavam nos boletins do setor, nos artigos especializados, nas redes de relacionamento entre empresários. Estavam disponíveis. Mas não foram priorizadas.
E o que esse comportamento revela é, no fundo, uma espécie de recusa inconsciente à ideia de que o Direito é parte da gestão estratégica do negócio. Ainda há, em muitas culturas empresariais, a visão do jurídico como um apêndice reativo, um setor que se mobiliza quando o problema já se materializou. Essa visão é, hoje, não apenas inadequada — ela é perigosa. Porque o custo da inação jurídica já não é apenas financeiro. Ele é estratégico, reputacional, estrutural.
Empresas que se sustentam na ideia de que “sempre funcionou assim” estão, na prática, construindo seus próximos problemas. E empresários que se surpreendem com mudanças legais que estavam anunciadas ignoram, talvez, o principal dever de quem lidera: antecipar-se.
Não se trata de prever o imprevisível, mas de se preparar para o inevitável.