Lucros desiguais, sociedades em conflito: até onde vai a liberdade dos sócios para mudar as regras do jogo?

Nem sempre o sócio que mais aparece é o que mais trabalha. E nem sempre o que mais investiu é o que mais contribui no dia a dia da empresa. Em sociedades empresárias, essa assimetria de atuação costuma acender um debate espinhoso: é possível distribuir lucros de forma desproporcional ao capital social?

A resposta curta: sim, é possível. Mas há limites. E o desrespeito a esses limites pode gerar desde nulidade da deliberação até autuação fiscal.

O Código Civil, em seu artigo 1.007, parte da regra geral: os lucros (e as perdas) devem ser partilhados conforme a proporção das quotas de capital. No entanto, o próprio dispositivo admite a liberdade contratual ao prever a possibilidade de estipulação em sentido contrário. Já o artigo 1.008 impõe uma barreira intransponível: é nula qualquer cláusula que exclua um sócio da participação nos lucros e nas perdas.

Na prática, isso significa que os sócios podem estabelecer uma distribuição de lucros que não siga a proporção das cotas — desde que ninguém seja totalmente excluído dos resultados. A lei permite a flexibilidade, mas impõe um mínimo de justiça.

Foi exatamente essa a discussão travada no STJ — e que ajuda a compreender os limites jurídicos e práticos dessa liberdade.

A decisão consolidou um ponto fundamental: a liberdade contratual dos sócios permite a adoção de critérios alternativos para a distribuição de lucros — desde que a estrutura jurídica esteja bem amarrada e a alteração seja formalmente deliberada.

Mas como garantir segurança jurídica nesse tipo de escolha?

Em que momento essa alteração precisa ser formalizada? Sempre que houver mudança nos critérios de distribuição, a deliberação deve ser feita por assembleia ou reunião de sócios — desde que o contrato social permita. Caso contrário, será exigida unanimidade. Já nas sociedades anônimas, as regras são mais rígidas e seguem os limites da Lei das S.A., que estabelece a obrigatoriedade de distribuição mínima de dividendos (art. 202), salvo disposição estatutária em sentido contrário.

O contrato ou acordo de sócios precisa refletir essa lógica? Sim, e quanto mais claro, melhor. Uma cláusula objetiva no contrato social é a base da segurança. E, quando a sociedade conta com múltiplos sócios operacionais, é altamente recomendável firmar um acordo de sócios para disciplinar essas questões com transparência — especialmente em temas como dedicação, metas e retorno financeiro.

Existe algum risco fiscal na distribuição desproporcional? Existe, e ele não pode ser ignorado. A Receita Federal tende a interpretar essas distribuições fora do padrão como tentativa de mascarar pró-labore. O risco é a reclassificação dos lucros como remuneração disfarçada, com incidência de IR, INSS e contribuições. Para mitigar esse risco, é necessário manter a remuneração formalizada como pró-labore e garantir que a distribuição de lucros tenha base contábil, ata registrada e critérios objetivos.

Esse modelo pode ser adotado por qualquer sociedade? Sim, mas com ressalvas. Sociedades limitadas gozam de maior liberdade contratual — desde que respeitem os artigos 997, VII; 1.007; e 1.008 do Código Civil. Já as sociedades anônimas têm regras mais engessadas, com maior formalismo e limitações impostas pela Lei 6.404/76. Ainda assim, é possível adotar fórmulas diferenciadas de distribuição mediante estatuto e acordo de acionistas, desde que devidamente fundamentadas.

E se o sócio deixar de atuar? Ele perde o direito aos lucros? Não automaticamente. A exclusão total dos lucros é proibida por lei. No entanto, é legítima a redução proporcional da participação quando o contrato ou regimento interno prevê critérios baseados no desempenho, tempo de dedicação ou contribuição efetiva. Foi exatamente essa a situação validada pelo STJ: a sócia que se afastou da operação não foi excluída formalmente, mas sua ausência do dia a dia empresarial justificou a diminuição proporcional nos resultados.

Quando o lucro depende do trabalho

O centro da controvérsia no caso julgado pelo STJ no Recurso Especial nº 2.053.655/SP. A sócia minoritária de uma empresa de consultoria ingressou com ação após ver sua participação nos lucros reduzida por deliberação dos demais sócios, que passaram a adotar como critério os dias efetivamente trabalhados. O contrato social previa a possibilidade de distribuição desproporcional, e a assembleia aprovou o novo modelo com base nessa cláusula.

O argumento da sócia era direto: estaria sendo excluída dos lucros por não comparecer diariamente à empresa — uma violação, segundo ela, ao art. 1.008 do Código Civil. O STJ, no entanto, afastou essa alegação. Para o Ministro Raul Araújo, não houve exclusão, mas sim a aplicação de um critério objetivo e proporcional à atuação real de cada sócio.

Destaco um trecho que sintetiza bem o entendimento:

“Não se confundem, portanto, duas situações absolutamente distintas: (i) é inválida cláusula que exclua o sócio da participação das perdas e lucros (art. 1.008 CC); (ii) é válida e hígida cláusula que distribui os lucros mediante critérios distintos da participação social (art. 1.007 CC). […] A situação jurídica criada pelo regimento interno não é a de exclusão de qualquer sócio da participação nos lucros, mas sim a de que tal participação decorrerá do trabalho desenvolvido por cada um dos sócios.”

A decisão ainda ressalta que o capital social da empresa era simbólico (apenas R$ 1.000,00), o que reforça a razoabilidade de atrelar a distribuição de lucros ao esforço efetivo. A sócia, que havia se afastado das atividades em 2013, não poderia esperar os mesmos resultados de quem continuava contribuindo com o sucesso da empresa.

Ou seja, a redução da sua participação não decorreu de uma manobra excludente, mas da sua própria inércia operacional — o que, segundo o Tribunal, não viola o direito de participação nos lucros, mas apenas o condiciona a critérios legítimos previamente acordados.

Esse caso serve de alerta para todas as sociedades em que nem todos os sócios atuam de forma igual no cotidiano da empresa. Deixar de prever regras claras e objetivas para lidar com isso é um convite ao conflito.

Distribuir é fácil. Sustentar é estratégia

A conclusão é inequívoca: a distribuição de lucros não é apenas um direito. É uma construção jurídica e estratégica, que exige previsibilidade, formalidade e maturidade negocial.

Se a sua sociedade ainda não tem um modelo de distribuição adaptado à realidade dos sócios, é hora de repensar. Estruturar juridicamente essas regras, por meio de contrato, assembleias e acordos bem desenhados, pode ser a diferença entre uma empresa em crescimento e um litígio societário prestes a eclodir.

Se você está em dúvida sobre como alinhar as expectativas dos sócios, formalizar os critérios de distribuição ou prevenir disputas futuras, talvez seja o momento de revisar a sua estrutura societária com o olhar de quem entende os riscos — e conhece os caminhos para proteger o que você construiu.

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